domingo, 7 de novembro de 2010

Fé e ateísmo

"[...] Sem dúvida cumpre reconhecer: quem tenta explicar a fé no meio de homens mergulhados na vida moderna e imbuídos da moderna mentalidade, de fato pode ter a impressão de ser um palhaço ou alguém surgido de um antigo sarcófago, que penetrou no mundo hodierno, revestido de trajes e pensamentos da antiguidade, incapaz de compreender este mundo e de ser por ele compreendido.
Todavia, se quem tentar anunciar a fé exercer bastante autocrítica, em breve notará não se tratar apenas de uma forma, de uma crise do revestimento em que a teologia se apresenta. Na estranha aventura teológica frente aos homens de hoje, quem tomar a sério a sua tarefa há de reconhecer e experimentar não só a dificuldade da interpretação, mas também a insegurança da própria fé, o poder arrasador da descrença dentro de sua própria vontade de crer. Por isso quem tentar honestamente prestar contas da fé cristã a si e a outros, aprenderá, a duras penas, não ser ele em absoluto o mascarado ao qual bastaria depor o disfarce para poder ensinar eficazmente aos outros. Compreenderá que a sua situação não se diversifica muito da situação dos outros, como talvez inicialmente tivesse pensado. Terá consciência de que de ambos os lados estão presentes as mesmas forças, muito embora de maneiras diversas. [...]
no crente existe a ameaça da incerteza capaz de revelar dura e subitamente, em momentos de tentação, a fragilidade de tudo o que, em geral, lhe parece tão evidente. [...] Isto é, em um mundo que parece completamente sólido e sem brechas, torna-se visível a alguém o abismo que espreita a todos – também a ele – sob a crosta firme das convenções que sustentam a fé. [...] o crente é capaz de realizar-se em sua fé somente sobre o oceano do nada; e o oceano da incerteza foi-lhe destinado como único lugar possível de sua fé. Apesar disso, não se pode considerar o descrente, numa falha evidente de dialética, apenas como um incréu. Assim como até agora reconhecemos que o crente não vive sem problemática, mas sempre ameaçado pela queda no nada, assim é forçoso admitir que também o incréu não representa absolutamente uma existência fechada e coesa em si mesma. Por brutal que seja o seu comportamento de ferrenho positivista que já de há muito deixou para trás as tentativas e os embates supranaturais, vivendo apenas no âmbito do que é diretamente certo – jamais o abandonará a secreta insegurança de se o positivismo está realmente com a última palavra. O crente vê-se sufocado pela água salgada da dúvida que o oceano lhe lança, sem cessar, à boca; do mesmo modo existe a dúvida do incrédulo quanto à sua descrença, quanto à totalidade do mundo que ele se resolveu a declarar como o todo. Jamais conseguirá certeza plena sobre a globalidade do que viu e declarou como o todo, mas continuará sob a ameaça de que – quem sabe? – a fé venha a representar e a afirmar a realidade. Portanto, como o crente se sabe ameaçado sem cessar pela descrença, obrigado a ver nela a sua perene provação, assim a fé representa a ameaça e a tentação do incréu, dentro do seu universo aparentemente fechado e completo. Em uma palavra, não existe escapatória ao dilema da existência humana. Quem deseja fugir à incerteza da fé, há de experimentar a incerteza da descrença que, por sua vez, jamais conseguirá resolver sem sombra de dúvida a questão de se, por acaso, a fé não se cobre com a verdade. Somente na recusa revela-se a irrecusabilidade da fé. [...] crente e incrédulo, cada qual a seu modo, participam da dúvida e da fé, caso não se ocultem de si mesmos e da verdade da sua existência. Nenhum é capaz de evadir-se completamente à dúvida; nenhum pode escapar de todo à fé. Para um, a fé torna-se presente contra a dúvida; para outro, pela dúvida e em forma de dúvida. Temos aí a figura fundamental do destino humano: ser capaz de encontrar o definitivo de sua existência somente nesse inevitável embate de dúvida e fé, de agressão e certeza. Talvez esteja aqui o caminho para transformar em ponto de encontro, de contato, a dúvida que preserva a um e a outro do perigo de encapsular-se em si mesmo. Ambos estão impedidos de enrolar-se em si mesmos; o crente é impelido para o que duvida, e este para o crente. Para um temos aí uma participação no destino do incréu, para o outro, a forma pela qual a fé, apesar de tudo, continua sendo um desafio." (RATZINGER, Joseph. Introdução ao cristianismo. São Paulo: Herder, 1970.)

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